segunda-feira, 6 de junho de 2011

LÁPIS SOLARIS

No final dos anos 70, desembarca na França, como refugiados, o casal Vera e Milan Kundera, vindos de uma Tchecoeslováquia destruída pela invasão russa. Indo morar em Rennes, Milan Kundera ao se defrontar com as paredes vazias da nova casa, decide fazer alguns desenhos para recobri-las. Nunca mais parou. Quando da tradução de seu “A Arte do Romance” para os Estados Unidos, foi convidado a ilustrar a capa desta edição. A partir daí, outros convites surgiram, inclusive para obras de outros autores. O escritor italiano Antonio Tabucchi, a partir desta história, inventou uma nova em que termina citando Barthes:

“Depois, ele abre o computador e escreve um e-mail para o cientista. “Caro cientista, ontem, em 7 de janeiro de 1977, fui até o Collège de France escutar a aula inaugural de um jovem filósofo que se chama Roland Barthes. Ele começou sua aula com uma frase que lhe envio porque ela pode ser útil ao senhor e a sua casa editorial. Cito-a literalmente: “A literatura trabalha nos interstícios da ciência: ela está sempre atrasada ou adiantada em relação a ela, como a pedra de Bolonha que irradia durante a noite aquilo que armazenou durante o dia, e por causa desta luz indireta ela ilumina o novo dia de amanhã. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos interessa. Cordialmente, Milan Qundera [brincadeira com Kundera e com o leitor, pois é como se Tabucchi piscasse o olho agora dizendo, mas trata-se aqui de Kundera ou do Pereira de novo?]”.

Fonte: Antonio Tabucchi in Sostiene Kundera [“Sustenta Kundera”, uma paródia de seu livro “Sustenta Pereira”], La Repubblica, 5/6/2011 e Maxime Rovere, I Giochi Grafici Ritrovati [As brincadeiras gráficas reencontradas] in La Repubblica, 5/6/2011.

Duas observações: a aula inaugural de Roland Barthes na cátedra de Semiologia Literária aconteceu no Collège de France em 7 de janeiro de 1977. Há uma tradução excelente de Leyla Perrone-Moisés, pela editora Cultrix. Sobre a pedra de Bolonha, há uma referência linda a ela em Goethe no seu “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, onde Werther diz, em algum lugar que por preguiça não vou localizar, algo parecido com isso: “Dizem que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve os seus raios e reluz por algum tempo durante a noite”. Teria sido esta a fonte de Barthes? A hipótese se justifica por ser este livro de Goethe um dos prediletos de Barthes, como o demonstra muito bem no belíssimo “Fragmentos de um Discurso Amoroso”. Ainda sobre a pedra, e para homenagear a ciência e minha filha que estuda química, o físico brasileiro Fernando de Souza Barros, na revista Ciência Hoje 1, p. 50 (1982) conta que a primeira observação de um fenômeno fosforescente foi realizada pelo sapateiro-alquimista italiano Vincenzo Cascariolo, ao observar, por volta de 1630, a existência de uma luz persistente azul-púrpura nos resídios de queima de um minério conhecido como barita (sultafo de bário). Ele encontrou esse minério no Monte Paderno, perto de Bolonha, o qual denominou de lápis solaris, palavra latina que significa “pedra solar”. Esse minério ficou mais tarde conhecido como pedra de Bolonha ou fósforo de Bolonha. Cascariolo pensou ter descoberto a famosa pedra filosofal, que supostamente transformaria metal em ouro, quando, na realidade, apenas sintetizou sulfureto de bário. Uma outra homenagem, lápis solaris também é lápis-lazúli. Talvez, juntando tudo isso agora e mexendo e remexendo, a literatura seja justamente esta pedra que passa de mão em mão irradiando não só a luz do autor, mas a luz desse desencontro que ela provoca entre as intenções de quem escreve e aquilo que revela sem querer em uma escrita e as intenções de quem lê e a leitura sem querer de outros sentidos que às vezes se revelam muito tempo depois, então, essa pedra que passa querendo passar e ao mesmo tempo passando o que não se queria, o que não se previa, o que não se controla, é a pedra de Drummond, é o meio do caminho de Dante, é o inconsciente de Freud – passageiro passador.

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