terça-feira, 31 de agosto de 2010

ILUMINADO

“Confident”, 2004, gravura de Mikio Watanabe, Yokohama, Tóquio e Paris.

“Eles passeavam e conversavam sobre como estava estranhamente iluminado o mar: a água tinha um tom lilás, tão suave e tépido, e da lua se estendia sobre ela uma faixa dourada”.

Anton Tchekov em A Senhora com o Cachorrinho in Lendo Tchekov de Janet Malcolm. Tradução de Tatiana Belinky, Ediouro, 2005, p.183.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

CANOA QUEBRADA

Fotografia de Autumn Sonnichsen, norte-americana e brasileira, Los Angeles, Berlim, Cidade do Cabo, Cairo, Washington, Paris, Nova Iorque e São Paulo. Da série “Compasses”.

Em Canoa Quebrada, um pretendente lhe perguntou: “sozinha?”. Ela respondeu, às gargalhadas: “nunca”. Restou o não-resto, presto-semente, arresto-fecundo, um resto serto, de sertão, de seta, de ser, resto-espera, gravidez certa, a presença desse vento, ele-mar, leo-nar, Proteu, Odisseu, teu Zeus, seu céu, réstia perene.

domingo, 29 de agosto de 2010

ENCONTRO MARCADO

Fonte: Zero Hora, 29 de agosto de 2010.

A história de Raúl Bustus me lembrou outra, de Somerset Maugham: “Certa vez um mercador de Bagdá mandou seu servo comprar provisões no mercado. Pouco depois, o servo voltou, branco e trêmulo, e disse: ‘Mestre, agora mesmo, quando estava no mercado, fui empurrado por uma mulher no meio da multidão e, ao me virar, vi que fora a Morte quem me empurrara. Ela me olhou e fez um gesto ameaçador. Agora me empreste o seu cavalo, vou cavalgar para bem longe desta cidade, a fim de evitar meu destino. Irei a Samarra: lá a Morte não me encontrará’. O mercador emprestou-lhe seu cavalo. O servo montou, enfiou as esporas nos flancos do animal e, tão rápido quanto este conseguiu galopar, se foi. Então o mercador foi até o mercado, viu-me em pé no meio da multidão, veio até mim e disse: ‘Por que você fez um gesto ameaçador para o meu servo, quando o viu pela manhã?’. ‘Não era um gesto ameaçador’, respondi, ‘era só uma reação de surpresa. Fiquei atônita de vê-lo em Bagdá, já que tenho um encontro marcado com ele esta noite, em Samarra’ ”.

sábado, 28 de agosto de 2010

OS PSICÓLOGOS PERFURADORES EM AÇÃO

Fonte: Gustavo Hennemann in Folha de São Paulo, 24 de agosto de 2010.

A perfuratriz se chama Strada. Haverá nome mais lindo para uma máquina? Lá vai essa água mole, 15 metros por dia, fazer furo, perfurar, abrir buraco, fender a pedra, dividi-la, introduzir uma passagem, um caminho, fazer estrada onde não há. Pois esse é exatamente o trabalho dos psicólogos ali presentes, abrir a boca desses homens, fazê-los falar, conversar entre si, jogar a força do grupo contra o desamparo, o isolamento, a solidão abissal que ali se instalou. São psicólogos perfuradores, abridores de estradas, psicanalistas, behavioristas, terapeutas disso, terapeutas daquilo, que, ao avesso da bobagem de esquecer as diferenças, pelo contrário, é exatamente com elas que farão o melhor, gente brava, gente honrada, gente digna, que ali escavam também, que ali tentam dar a mão, dar uma escuta, dar uma rotina, oferecer uma vida ainda que inviável, ainda que desesperadora, ainda que improvável – a vida que há. A todos esses psicólogos, a minha homenagem.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

UM MAR DE ROCHA

O rosto de Florencia Ávalos, um dos 33 mineiros soterrados, visto na tela de uma televisão no acampamento dos familiares na mina San José, no Chile. Fotografia AP in El País, 27 de agosto de 2010.

“Señor presidente, nosotros necesitamos que no nos abandonen. Como mineros, los 33 que estamos aquí, bajo un mar de roca, estamos esperando que todo Chile haga fuerza para que nos puedan sacar de este infierno” [a resposta de Luis Urzúa, o chefe de turno dos 33 mineiros soterrados no Chile à pergunta do presidente do Chile, Sebastián Piñera, sobre o que eles necessitavam – fonte: F. Peregil in El País, 26 de agosto de 2010].

Um mar de rocha. Nem Dante Alighieri conseguiu imaginar isso no Inferno. Lá está a selva escura, os que ardem de desejo sem a esperança de saciá-lo, o negro vendaval reservado aos pecadores carnais, a chuva gélida, pesada, imutável que cai sobre os gulosos, as águas ferventes mais adiante, as turbas demoníacas em Dite, o rio de sangue chamado Flegetonte para os assassinos e tiranos, as almas nuas sobre um areal fervendo sob a chuva de labaredas, os abismos, o Malebolge, dez covas malditas, fossos, cloacas, o piche quente, poços escuros, o gelo atroz no centro da Terra. Mas não há mar de rocha em Dante. Isso que acontece no Chile está além de Dante. Um mar de rocha, um oceano de pedra. Dói escutar, dói imaginar isso. Mar de rocha. Insuportável. Um mar de rocha.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

FERIDA

“Annette” de Alberto Giacometti, 1953. Escultura em bronze in Museum of Fine Arts, Boston.

“A beleza tem apenas uma origem: a ferida, singular, diferente para cada um, oculta ou visível, que o indivíduo preserva e para onde se retira quando quer deixar o mundo para uma solidão temporária, porém profunda. Há, portanto, uma diferença imensa entre essa arte e o que chamamos o miserabilismo. A arte de Giacometti parece querer descobrir essa ferida secreta de todo ser e mesmo de todas as coisas, para que ela os ilumine.”

Jean Genet in O Ateliê de Giacometti. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, pp. 12-13.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

FERREIRO

Estúdio do artista Sandro Martini em Milão, 2002. Fotografia de Ferdinando Scianna, Magnum Photos.

Autorretrato.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A THING OF BEAUTY

Beryl Bainbridge por Dmitri Kasterine em Londres, 1977, na retrospectiva de seu trabalho na National Portrait Gallery, Londres, de 11 de setembro a 3 de abril de 2011.

O que é esse retrato de Beryl Bainbridge pintado, esculpido, surpreendido, capturado por esse ferreiro chamado Dmitri Kasterine? Essa mulher com nome de ponte, amante das palavras cruzadas, das palavras sussurradas, das palavras escritas, das palavras cantadas, essa mulher só pode ser aquilo que Keats disse uma vez assim, a thing of beauty is a joy for ever, tão lindo isso, o que há de belo nessa mulher, é para sempre, há de ser for ever a jóia, joy, minha alegria.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

ENLACE

Desenho de Al Hirschfeld em 1983.

Woody Allen e Diane Keaton ou Alvy Singer e Annie Hall.

domingo, 22 de agosto de 2010

NUNCA ANTES NESSE PAÍS...


Fonte: primeira página do Globo, 22 de agosto de 2010.

A FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos) manda avisar: é Dilma na cabeça!

O NEGÓCIO DA PULSÃO DE MORTE

Fonte: Clay Bennett in Chattanooga Times Free Press, 22 de agosto de 2010.

Genial! Talvez a intenção de Clay Bennett tenha sido a de mostrar a saída dos Estados Unidos-construtores e o retorno dos iraquianos-destruidores, porém, sem querer, os dois têm o mesmo uniforme, e aí é possível uma outra interpretação. Quem precedeu os construtores nessa história foram os Estados Unidos-destruidores. Deve ser isso aliás o que chamam da verdadeira alma do capitalismo, ou seja, a destruição criativa. Schumpeter deve ter tido um orgasmo no túmulo. Quem diria que os militares um dia seriam meros empregadinhos, soldadinhos de chumbo a serviço, na folha de pagamento, batendo ponto diariamente, caixeiros viajantes e operários-padrão das grandes empresas. Atrás de cada edifício demolido, de cada campo de petróleo atacado, um novo contrato de construção-exploração. É claro que essa não é a única explicação para uma guerra imbecil. Freud trouxe para os economistas um problema que eles nada querem saber, não querem ver, não querem ouvir falar: a pulsão de morte. O que os Estados Unidos foram fazer no Iraque? Não só negócios, mas também se perder, se sabotar, se sacanear, se autodestruir. Conseguiram. Mas, esse êxito não basta. O gozo exige mais sacrifícios, mais mortes, mais exploração, mais violência. Soon.

sábado, 21 de agosto de 2010

CABELO AO VENTO


Poema de Ingeborg Bachmann traduzido por Vera Lins in Risco de Carlito Azevedo no Caderno Prosa & Verso do Globo, 21 de agosto de 2010.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

CARTAS



De Ivan Tcheglov a Tchekov, em 29 de maio de 1888:
“Não fiquei totalmente satisfeito com seu último conto [“Kisotchka”]. É claro que o engoli de uma só vez – isso nem se discute –, porque tudo o que você escreve é tão saboroso e real que pode ser engolido facilmente e com prazer. Mas o final – “Não dá para entender nada neste mundo...” – é abrupto; e certamente é papel do escritor entender o que se passa no coração de seu herói; de outro modo, sua psicologia permanecerá obscura.”

De Tchekov a Ivan Tcheglov, em 9 de junho de 1888:
“Tomo a liberdade de discordar de você. Um psicólogo não deveria fingir que entende o que ele não entende. Além disso, o psicólogo não deveria transmitir a ideia de que entende o que ninguém entende. Não devemos bancar o charlatão, vamos dizer honestamente que nada neste mundo é claro. Só os tolos ou os charlatães sabem e compreendem tudo.”

Fonte: Janet Malcolm in Lendo Tchekov. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 27.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

DIA DO SACI


Sublime!
Com uma perna, manco, rengo, claudicante, torto, tropeçante, atrapalhado, travesso, desordenado, maravilhoso.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

ESPELHO


Praia da Armação, Florianópolis. Fotografia de Jorge Araújo, Folhapress in Folha de São Paulo, 9 de agosto de 2010.

Autorretrato.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

FRAGILIDADE

“Nomade” de Jaume Plensa, escultura furada de 8 metros de altura no Bastion Saint-Jaume em Port Vauban, Quai Rambaud, em Antibes. Fotografia de Mick Donnelly em 6 de setembro de 2007.

“Sílvio Barsetti - Você define seu livro [“Ribamar”, ed. Bertrand Brasil] como uma travessia, na qual só lhe restava inventar uma verdade. Que verdade é essa?
José Castello - A verdade precária, incompleta e frágil que a literatura nos oferece. O mundo contemporâneo é arrogante. Temos sempre que vencer - na carreira profissional, no mundo acadêmico, no mercado de capitais, na copa do mundo. Não suportamos os derrotados e, no entanto, trazemos a derrota no coração. É o encontro com o fracasso que nos dá a possibilidade de invenção. Aprendi isso lendo ficções. Em um mundo cada vez mais pragmático e duro, a literatura se torna o último reduto da fragilidade. Nela, o sujeito ainda pode dizer que falha, que não sabe, que se sente desamparado e perdido. E nem por isso precisa desistir de ser.”

Entrevista de José Castello a Sílvio Barsetti in O Estado de São Paulo, 15 de agosto de 2010.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

GRADIVA

Yaqueline Lugo por Gorka Lejarcegi in El País, 16 de agosto de 2010.

Lola Galán traz no El País a história de Yaqueline Lugo, nascida em Cuba há 31 anos e caixa de supermercado em Colmenar Viejo, a 30 km. ao norte de Madri. Essa mulher trocou o inferno socialista pelo paraíso capitalista. Essa linda cubana, que fez o caminho inverso dos conquistadores espanhóis, querendo o novo, a capital, Madri, teve que ir morar a 60 km. dela, na serra norte, em Bustarviejo. Querendo um marido no trabalho, ela descobre que não há trabalho para seu marido espanhol de 56 anos, demitido de uma empresa de transporte desde setembro de 2008. Querendo filhos, lhe dói mais essa renúncia em nome de uma “crise” que ela percebe só valer para alguns. Querendo trabalho digno, teve que aceitar um contrato aviltante de uma “jornada móvel” de no mínimo 70 horas por mês e, no máximo, 140 horas – ou seja, ela nunca sabe quanto tempo ficará em casa, cada dia reserva uma surpresa – ora agradável, ora desagradável. Querendo debater as condições de trabalho nessa Europa filha do Iluminismo, organizou o primeiro comitê sindical neste supermercado filho da puta. Resultado: foi demitida com a justificativa padrão “foi a crise”. Ela, nada boba, nada quieta, nada medrosa, levou seu problema à Justiça, recorreu ao Ministério do Trabalho, ganhou. Voltou ao trabalho pela força da lei, agora com horas livres garantidas para a atividade sindical. Porém, para Yaqueline basta. Dessa terra prometida ela já não quer mais saber. Como viver em um paraíso que exige o silêncio e o medo para funcionar? Ela diz, ela, humana, fala, ela, gente, não coisa, não resto, não mercadoria, deseja: “Carencias tiene Cuba. Pero es mejor eso que la tortura de vivir en la abundancia de aquí sin acceso a ella” [“Cuba é uma carência só, mas pelo menos é melhor do que essa tortura de viver na abundância daqui sem ter nenhum acesso a ela”] . Que coisa mais linda! Ela, ao avesso do que querem lhe convencer, avessa a toda propagandaiada da tv, papagaiada xarope vinte e quatro horas por dia, quer voltar para Cuba. O marido, com uma filha de outro casamento e família na Espanha, não quer. Yaquelín, linda, querida, responde: “Pero sé de todas todas que yo le convenzo” [“Com jeitinho, eu lhe convenço, logo logo”]. Que cubana adorável! Que mulher mais linda! Gradiva!

domingo, 15 de agosto de 2010

CHAMA

Porto Alegre, 13 de agosto de 2010. Fotografia de Jefferson Botega in Zero Hora, 14 de agosto de 2010.

“Quem perder suas prendas no campo, guarde esperança: junto de algum moirão ou sob os ramos das árvores, acenda uma vela para o Negrinho do pastoreio e vá lhe dizendo – Foi por aí que eu perdi...Foi por aí que eu perdi...Foi por aí que eu perdi!...
Se ele não achar...ninguém mais.”

Simões Lopes Neto em O Negrinho do Pastoreio in Lendas do Sul. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2002, p. 125.

sábado, 14 de agosto de 2010

ITAQUI


Fonte: Antonio Augusto Fagundes in Zero Hora, 14 de agosto de 2010.

Em São Sepé, há mais de 200 anos, arde um fogo de chão, mantido por gerações e gerações de gaúchos. Há mais de 200 anos! Que coisa linda! Essa chama se chama vida. Ela faz dodói, ela acende a vela do negrinho, ela passa e transpassa, dá a luz, chama. Hoje, em Ítaca-Itaqui, é isso que se comemora. Há chama.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

ODISSÉIA

Fotografia de Damon Winter na reportagem de James Dao in primeira página do The New York Times, 11 de agosto de 2010.

Faltam as palavras do menino afegão. No meio do caminho, duas armas, dois fuzis, dois monstros sem cabeças – o menino sim, com cabeça, com as mãos no bolso e com um olhar, sim, um olhar. Entre Cila e Caribdes, conseguirá passar? Imóvel por enquanto, prisioneiro em sua própria terra por enquanto, terrorista por enquanto, resto não contável por enquanto, alvo por enquanto, há um olhar nesse menino. Há pernas nesse menino. Há mãos nesse menino. Há vida nesse menino. Esse menino fala por todos os poros, esse menino grita, esse menino é puro movimento, a finta, o desvio, o drible. O nome desse menino é Ulisses.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

MARIANNE



“Velasquez, après cinquante ans, ne peignait plus jamais une chose définie. Il errait autour des objets avec l'air et le crepuscule, il surprenait dans l'ombre et la transparence des fonds, les palpitations colorées, dont il faisait le cendre invisible de sa symphonie silencieuse. Il ne saisissait plus dans le monde que les échanges mystérieux, qui font pénétrer les uns dans les autres les formes et les tons, par un progrès secret et continu, dont aucun heurts, aucun sursaut, ne dénonce ou n'interrompt la marche. L'espace règne. C'est comme une onde aérienne qui glisse sur les surfaces, s'imprègne de leurs émanations visibles, pour les définir et les modeler. Et, emportées partout ailleurs comme un parfum, comme un écho d'elle, qu'elle disperse sur toute l'étendue environnante en poussières, impondérable.”

Élie Faure in L’Histoire de l’Art Moderne-Tome I citado por Jean-Luc Godard na abertura de Pierrot Le Fou [no Brasil traduzido como O Demônio das Onze Horas].

Só Godard mesmo para colocar Jean-Paul Belmondo em uma banheira, recitando Élie Faure para sua filha em Pierrot Le Fou. Genial! O filme poderia terminar aí que já seria uma obra de arte epifânica. E o que diz Élie Faure sobre Godard, sobre Pierrot? Diz que depois dos cinquenta, e os historiadores nunca sabem muito bem qual a causa das mudanças, então tentam nos convencer que foi a idade que provocou isso, bobagem, há tantas coisas que podem ter mudado Velásquez, tantos encontros decisivos, e aí Godard vê o que Faure não vê, pois coloca Ana Karênina, digo, Karina ou Colombina ou Marianne Renoir no meio do caminho desse Pierrô-Ferdinand, mas então, sem saber, o cego Faure tasca esse depois dos cinquenta, o pintor parou. Ele, que pintava certinho, pintava direitinho, começa a errar pela tela, aéreo, crepuscular, les palpitations, maravilhoso isso, essa força constante que lhe agitava, aquela cor - da pele dela, depressa-, como uma symphonie silencieuse - a voz dela, sussurro - sedosa, sereia querida – eu te escuto -, e aí esse pintor que deixa de ser pintor, se perde pelas échanges mystérieux, nessas trocas misteriosas, lindo isso, qui font pénetrer, ai, ai, ai, há penetrações nesse ar e nesse crepúsculo, desse ar e desse crepúsculo que desce, nessas formas suaves, belas e nesses tons, progrès secret et continu, nome bonito para aquilo que se impõem a ele, o toma pela boca, o devassa, divide o já dividido, nada mais interrompe essa marcha, exceto a morte, a rainha do fim dos passos, dont aucun heurts, aucun sursaut, ne dénonce ou n’interrompt la marche, e, nos diz Faure, é então que l’espace règne, o espaço triunfa, o espaço o sidera, comme um parfum, belíssimo isso, como um cheiro – cheirosa - que se espalha pelo ar, impondérable. O assassino do Tolstói odiaria isso, mas Tchekov, médico de almas e dos corpos sofridos, choraria de alegria. Obrigado, Godard.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

terça-feira, 10 de agosto de 2010

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

JULIE


Julie Murphy, 7 anos. Fotografia cortesia de Maria Fife, mãe de Julie, via Associated Press na reportagem de John Schwartz in The New York Times, 7 de agosto de 2010.

Ela tem 7 anos de idade e já encarna o espírito empreendedor que faz a América continuar a ser a terra a ser descoberta, a terra a ser inventada a cada dia. No entanto, no meio do caminho, nessa trilha que Huguinho, Zezinho e Luizinho já passaram, que o xarope do Tio Patinhas já correu, que o atrapalhado e maravilhoso, bem por causa disso, Pato Donald já tropeçou, ela se deparou com a pedra. Uma pedra dura, áspera, uma pedra chamada Estado-babaca. O que é o Estado-babaca? Vamos à história de Julie. Aos 7 anos de idade, lá foi ela com sua mãe vender limonada em uma feira de artes na cidade de Portland, Oregon. De repente, o encontro com o Estado-babaca à espreita, de emboscada, à sorrelfa, à socapa. Lá chegam os inspetores-gerais, funcionários-públicos gordos, vinte salários por ano, obesos de benefícios, lentos, pesados, com a lei no bolso, uma lei feita com capricho e rigor por quem nunca teve que vender limonada na rua, lei de nada, lei boba, lei minuciosa que deve ter custado ao Estado-babaca no mínimo vinte vereadores, quarenta deputados e dez senadores para ser aprovada. E a lei é severíssima. Diz esta lei que, para uma criança de 7 anos vender limonada a partir de agora neste Estado-babaca, é necessário uma licença temporária de restaurante, que custa 120 dólares. Aí chegamos ao cerne, ao fulcro, ao ápice da questão. É isso que o Estado-babaca exige para funcionar: mais dinheiro, mais taxas, mais impostos, mais multas. O Estado-babaca, gigantesca figura, grotesco elefante, Leviatã disfarçado de Bem Comum, se incomoda com essa menina, não suporta essa menina. Reparem que cada copinho de limonada custa 50 centavos. Para o Estado-babaca, não interessa. Se vire. É 120 dólares ou nada feito. Julie, ainda com os cachinhos presos, chorou ao ter que desmontar sua barraquinha de venda de limonada. Só depois da sua história ganhar as páginas da internet, virar piada no bendito twitter, é que o prefeito da cidade foi obrigado a pedir desculpas. Não sem frisar que a lei vai continuar e, é claro, o Estado-babaca vai voltar. Maior, com mais fiscais, com mais relações-públicas, com mais propaganda, com mais taxas e mais multas para quem ousar fazer qualquer coisa. Querida Julie, dessa vez eles venceram. Mas, espere, vejo um cachinho seu se soltar ao vento por causa dessa confusão, seus pés quererem mais movimento, suas lágrimas moldarem letras, sua dor virar desejo. Venceram?

domingo, 8 de agosto de 2010

INA

Big Sur, Califórnia. Fotografia de Frans Lanting na reportagem “Big Sur – A Essência Californiana” de Pico Iyer in National Geographic Brasil, v. 1, nº. 4, agosto de 2000, pp. 118-119, editora Abril, São Paulo.

A névoa, Ane, Aninha, Ina – a primeira professora, vem, voa, ave ligeira, leitura vagarosa, porosa, escorregadia, minha mão escreve o que nela se inscreveu, na carne, sulcos de memórias, Nebel, tua língua, Liebe, branca, Kontakt, nebbia da umidificazione, o suco, na Oberhaut, aí, a prova dos nove, no céu da boca, anebula, eu Rio Grande do Sul, tu Baviera. Travessias.

sábado, 7 de agosto de 2010

EM CASA, EM MOSCOU...

Fotografia de Nobuyoshi Araki, Japão.

...o que acontecera no quebra-mar, e a madrugada de névoa nas montanhas, e o navio chegando de Feodosia, e os beijos....

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

RECENDER


Detalhe de O Beijo de Théodore Géricault, ca. 1816-17 in Museo Thyssen-Bornemisza, Madri.

“Aqui na gare já recendia a outono, a noite estava fresca”.

Anton Tchekov em A Senhora com o Cachorrinho in Lendo Tchekov de Janet Malcolm. Tradução de Tatiana Belinky, editora Ediouro, 2005, p.189.