segunda-feira, 21 de março de 2011

IARA

Dilma Rousseff e Barack Obama depois de recepção para o presidente no Palácio do Alvorada. Fotografia de Wilson Pedrosa/AE na primeira página do jornal O Estado de São Paulo, 20/3/2011.

A belíssima fotografia de Wilson Pedrosa me desconcertou. O que significa esse encontro de dois presidentes em frente ao espelho d'água do Palácio do Alvorada? A escolha de nossa presidente não poderia ter sido mais simbólica, pois do outro lado do espelho estão essas magníficas banhistas de Alfredo Ceschiatti, também conhecidas como Iaras. Estou tentando continuar o raciocínio mas Olavo Bilac não deixa. “Vive dentro de mim, como num rio, uma linda mulher, esquiva e rara”. É demais, não? Vive dentro de mim. Poderia parar neste verso que já seria obra-prima. “Num borbulhar de argênteos flocos, Iara, de cachinhos dourados e corpo frio”. Corpo frio? Mas que diabos Bilac quer dizer com isso? Por que Iara teria o corpo frio? Água fria do rio é uma coisa, mas corpo frio? Ele continua assim, “entre as ninféias a namoro e espio: e ela, do espelho móbil da onda clara, com os verdes olhos úmidos me encara, e oferece-me o seio alvo e macio”. Lindo demais. “Oferece-me o seio alvo e macio”. Me perdi neste seio, nessa alvura, nessa maciez, nesses argênteos flocos. “Oferece-me o seio alvo e macio”. Há que repetir isso em voz alta, declamar com ardor. Como é genial esse Bilac! O poema não termina assim: “precipito-me, no ímpeto de esposo, na desesperação da glória suma [aqui Dilma está dizendo a Obama: cuidado com a desesperação da glória suma na Líbia ou, de forma mais lacaniana, suma logo da Líbia!], para a estreitar, louco de orgulho e gozo... [que coisa linda esses três pontinhos no poema. Por outro lado, essa menção ao gozo, ao perigo do gozo, ao precipício do gozo, ao que está além do gozo, me parece uma clara evocação do que não pode ser escrito, então esses três pontinhos estão no lugar daquilo que não se fala ou, melhor, daquilo que já não pode mais ser falado, pois o sujeito que fala já não existe mais]. E corre o rio “mas nos seus braços, ai, acabo de citar mal, o original diz nos meus braços, a ilusão acaba, se esfuma [esse esfuma é demais], e a mãe d'água, exalando um ai piedoso, desfaz-se em mortas pérolas de espuma”. Espetacular! “Desfaz-se em mortas pérolas de espuma”! Maravilhoso poema! Sensacional! A mãe morreu, daí o corpo frio. Agora, o que continua misterioso, e eis aí o grande artista que foi Alfredo Ceschiatti, é por que ele chama sua obra de “Iaras”. Como assim? Iara não é só uma? Por que Alfredo Ceschiatti duplicou Iara? Talvez a arte seja justamente esse movimento de reviver aquilo que se perdeu, que partiu, a escultura de uma saudade, a presença da ausência. Uma derradeira observação: Iara foi também sereia. E aí fica mais simbólico ainda o ato de Dilma para com Obama: nesse tempo de “Aurora da Odisséia”, há uma “Alvorada” diferente, com um outro canto das sereias, que fala de banhos, de seios, da morte também, mas não mais da morte matada, mas da outra, a morrida, daquilo que é esquivo e raro, a palavra na política, os encontros possíveis daqueles que decidem fazer de um palácio a morada das palavras, dos acordos, enquanto vida houver. Estará nosso Ulisses com os ouvidos tapados de cera?

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