segunda-feira, 14 de março de 2011

O SÉTIMO SAMURAI

Toshiro Mifune como Kikuchiyo em “Os Sete Samurais” de Akira Kurosawa.

Akira Kurosawa fez em 1954 “Os Sete Samurais”. Não é um filme. É uma obra-prima, uma obra de arte atordoante, maravilhosa, indispensável. Lá está o gigante Toshiro Mifune como Kikuchiyo, o coxo, o bêbado, o perdido, o errado, o desobediente, Édipo-colono que quer ser samurai. Cada cena de Kurosawa é uma pintura, é uma escultura feita de palavras, gestos e sons – a natureza está lá, dura, difícil, limitada, porém, fértil, possibilitadora, esperançosa – é o próprio final, a mesma terra que é cemitério é também plantação e colheita. Há duas cenas em sequência de uma grandeza, de uma humanidade, de uma poesia que deveriam estar expostas permanentemente nas ruas de todas as cidades do mundo. Revi ontem pela vigésima vez o filme todo, mas é nestas cenas que as lágrimas renascem, fazem redemoinho, despencam. Na primeira delas, antes do ataque dos bandidos, Kikuchiyo encontra na aldeia as armaduras de samurais mortos pelos próprios camponeses em tempos antigos. Inicia então um discurso memorável em que ele pergunta se os samurais ali presentes, os seis representados como círculos na bandeira de combate, enquanto ele, Kikuchiyo, está desenhado como um triângulo, aquele que representa a diferença absoluta, o sem nome e sem idade – ele não sabe como se chama, então ele apresenta aos demais uma “certidão” com o nome Kikuchiyo, só que pela data de nascimento ali inscrita, ele teria 13 anos, daí o fato dele agir muitas vezes como uma criança, um palhaço, o Mazaropi dos samurais, sendo escolhido pelas crianças da aldeia como o ídolo absoluto; elas chegam a fazer platéia para rir de suas imitações ou então tentativas de domar um cavalo, e, na hora em que ele vê o melhor dos samurais fazer uma ação arriscada e voltar do campo inimigo com um rifle capturado, ele também se arrisca, usa da astúcia máxima de se fazer passar de bandido e também consegue um rifle para, perplexo, ver todo seu esforço ser ridicularizado e condenado pelo líder dos samurais, que o coloca em seu lugar, o de não samurai, um desigual, uma ameaça para o grupo, e nesta hora, bem antes destas peripécias, este homem em pedaços pergunta a esse grupo de mestres se eles pensam que os camponeses são santos. E ele responde que não. Eles são bestas feras, bichos feras espertas, feras astutas que escondem suas riquezas, escondem suas mulheres, escondem quem de fato são. Mas quem transformou eles em feras, pergunta Kikuchiyo. E ele responde: vocês fizeram. Vocês, samurais, fizeram isso. É de vocês a responsabilidade. Vocês queimam suas casas, vocês destroem suas plantações, vocês roubam sua comida, vocês transformam eles em escravos, tomas suas mulheres e matam quem ousar resistir. Trata-se de uma impressionante inversão dialética – subitamente os bons viram maus, os mocinhos são também bandidos, aqueles que eles combatem podem ter sido, são ou serão eles mesmos um dia. Porém, isso se repete de um outro jeito na cena logo a seguir, quando os bandidos atacam a aldeia e queimam a casa da roda d'água, onde estava o velho da aldeia, que se recusara a ir para a área segura defendida pelos samurais, então, lá vai Kikuchiyo tentar ajudar, e, inesperadamente, ele encontra uma mulher ferida com um bebê no colo. Ela entrega o bebê vivo a Kikuchiyo e morre, enquanto ele olha apavorado para o bebê, transtornado, começa a chorar e passa o bebê o mais rápido possível para o líder dos samurais dizendo “eu fui esse bebê”. Subitamente se revela sua origem, suas raízes, seu chão, suas escolhas – aliás, pode-se fazer uma brincadeira séria com o sobrenome do ator. Kikuchiyo é aquele que faz a travessia do “Me Funai” grego presente em “Édipo em Colono”, “antes não ser”, para um ser, o ator que soube esvaziar seu ser em cada personagem incorporado, o pouco-de-ser “Mi Fune”, Mifune. É de chorar e agradecer o resto da vida a esse homem chamado Akira Kurosawa e a este ator da vida em sua capenguice e esplendor máximos, Toshiro Mifune. O Japão nos deu para sempre seu mais belo presente. Muito obrigado.

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