
“Diante das peças de Serra, a própria arquitetura, praça ou rua que as abriga parece frágil, recente, feita de papelão, e o mundo estranhamente ameaçado, como o próprio eixo vertical-horizontal do espectador. São artefatos pré ou pós-históricos, capazes de abalar a orgulhosa auto-suficiência do capitalismo tardio. Por isso são muros de ferro, apoiados na própria curvatura ou na parede que os abriga, obstaculizando o trajeto e a vista do público. Em Amilcar, ao contrário, é a dobra (e a fissura) o eixo de tudo – é ela quem põe a peça de pé (espécie de enigma primário de toda escultura), e é ela também quem deixa o mundo entrar, multiplicando as vistas para quem percorre o trabalho. A dobra, a partícula de conexão, está no centro do pensamento de Amilcar, que opera assim a partir de uma espécie de troço primal, de “sono rancoroso do minério” [verso de Carlos Drummond de Andrade], que no entanto se parte e se oferece a uma gramática [referência a Ronaldo Brito, “Tempo e Espaço” in Amilcar de Castro, São Paulo, Takano editora, 2001]. É este desdobrar da peça em mundo, este ir-e-vir da opacidade do peso à transparência do vão, que está no centro da poesia de Amilcar. Estes dois momentos aparecem, nas peças de corte-e-dobra, equilibrados numa tensão sóbria que as peças de corte reduzirão depois ao mínimo, transformando os vazios do primeiro grupo de trabalhos em fissuras, rebarbas onde a luz, mais do que a vista, penetrará.”
Nuno Ramos em “O Ferro Futuro (Amilcar de Castro)” in Ensaio Geral. São Paulo: Globo, 2007, p.168.
... sono rancoroso do minério...
ResponderExcluirDeus, o que nos dizem de estranho esses lindos poetas...