
“Depois, ele abre o computador e escreve um e-mail para o cientista. “Caro cientista, ontem, em 7 de janeiro de 1977, fui até o Collège de France escutar a aula inaugural de um jovem filósofo que se chama Roland Barthes. Ele começou sua aula com uma frase que lhe envio porque ela pode ser útil ao senhor e a sua casa editorial. Cito-a literalmente: “A literatura trabalha nos interstícios da ciência: ela está sempre atrasada ou adiantada em relação a ela, como a pedra de Bolonha que irradia durante a noite aquilo que armazenou durante o dia, e por causa desta luz indireta ela ilumina o novo dia de amanhã. A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a literatura nos interessa. Cordialmente, Milan Qundera [brincadeira com Kundera e com o leitor, pois é como se Tabucchi piscasse o olho agora dizendo, mas trata-se aqui de Kundera ou do Pereira de novo?]”.
Fonte: Antonio Tabucchi in Sostiene Kundera [“Sustenta Kundera”, uma paródia de seu livro “Sustenta Pereira”], La Repubblica, 5/6/2011 e Maxime Rovere, I Giochi Grafici Ritrovati [As brincadeiras gráficas reencontradas] in La Repubblica, 5/6/2011.
Duas observações: a aula inaugural de Roland Barthes na cátedra de Semiologia Literária aconteceu no Collège de France em 7 de janeiro de 1977. Há uma tradução excelente de Leyla Perrone-Moisés, pela editora Cultrix. Sobre a pedra de Bolonha, há uma referência linda a ela em Goethe no seu “Os Sofrimentos do Jovem Werther”, onde Werther diz, em algum lugar que por preguiça não vou localizar, algo parecido com isso: “Dizem que a pedra de Bolonha, quando exposta ao sol, absorve os seus raios e reluz por algum tempo durante a noite”. Teria sido esta a fonte de Barthes? A hipótese se justifica por ser este livro de Goethe um dos prediletos de Barthes, como o demonstra muito bem no belíssimo “Fragmentos de um Discurso Amoroso”. Ainda sobre a pedra, e para homenagear a ciência e minha filha que estuda química, o físico brasileiro Fernando de Souza Barros, na revista Ciência Hoje 1, p. 50 (1982) conta que a primeira observação de um fenômeno fosforescente foi realizada pelo sapateiro-alquimista italiano Vincenzo Cascariolo, ao observar, por volta de 1630, a existência de uma luz persistente azul-púrpura nos resídios de queima de um minério conhecido como barita (sultafo de bário). Ele encontrou esse minério no Monte Paderno, perto de Bolonha, o qual denominou de lápis solaris, palavra latina que significa “pedra solar”. Esse minério ficou mais tarde conhecido como pedra de Bolonha ou fósforo de Bolonha. Cascariolo pensou ter descoberto a famosa pedra filosofal, que supostamente transformaria metal em ouro, quando, na realidade, apenas sintetizou sulfureto de bário. Uma outra homenagem, lápis solaris também é lápis-lazúli. Talvez, juntando tudo isso agora e mexendo e remexendo, a literatura seja justamente esta pedra que passa de mão em mão irradiando não só a luz do autor, mas a luz desse desencontro que ela provoca entre as intenções de quem escreve e aquilo que revela sem querer em uma escrita e as intenções de quem lê e a leitura sem querer de outros sentidos que às vezes se revelam muito tempo depois, então, essa pedra que passa querendo passar e ao mesmo tempo passando o que não se queria, o que não se previa, o que não se controla, é a pedra de Drummond, é o meio do caminho de Dante, é o inconsciente de Freud – passageiro passador.
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