“Detalhes de vidas no limbo norte-americano”. Fotografia de Brennan Linsley/Associated Press na reportagem de Charlie Savage, William Glaberson e Andrew W. Lehren in The New York Times, 25/4/2011.
Sobre o horror de Guantánamo, o campo de concentração inventado pelos Estados Unidos após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, duas notícias que fizeram Kafka se revirar no túmulo espantado. A primeira delas, traduzida na Folha de São Paulo de hoje, veio do repórter James Ball do inglês The Guardian. Ela diz que prisioneiros capturados com relógio Casio no pulso eram automaticamente suspeitos de pertencer à rede terrorista Al Qaeda, sendo o relógio um “sinal da Al Qaeda” e, portanto, tinham imediatamente prolongados o tempo de prisão. É esse “imediatamente” que é chocante. O prisioneiro não foi ouvido, não teve direito à nenhuma defesa, não há testemunhas, há o sinal no pulso, o relógio Casio, a prova única e definitiva! Eis aqui um exemplo terrível do que significa substituir uma escuta pelo olhar, pela imagem. Aliás, só para apimentar o debate, não estará a França no mesmo caminho ao proibir o uso da burca por mulheres islâmicas em suas ruas? Como diz Vladimir Safatle na mesma Folha de hoje, aguarda-se nas próximas horas a proibição do hábito das freiras católicas também. A segunda notícia veio dos repórteres Rod Nordland e Scott Shane no The New York Times de ontem. Eles descobriram que um dos mais perigosos terroristas do mundo, segundo a “inteligência”, preso e trancado incomunicável em Guantánamo durante mais de 5 anos, o sr. Abu Sufian Ibrahim Ahmed Hamuda bin Qumu, foi transferido à Líbia e hoje é um dos líderes “revolucionários” contra a ditadura de Muamar Kadafi. Incrível! De “perigoso terrorista” à “líder revolucionário” num piscar de olhos. Quem decidiu isso? Quem estabelece que 5 anos é o tempo de “conversão” deste homem? Quem define o relógio Casio como sinal de uma rede terrorista? Quando a maior democracia do mundo está nas mãos de um juiz invisível desses, de um juiz tirano e sem controle, de um juiz que não se pode ver nem duvidar, sequer recorrer, então ela já não é mais uma democracia. Como demonstrou tão bem o genial cineasta indiano-norte-americano M. Night Shyamalan, no indispensável “A Vila”, que é sua resposta ao seriado “Arquivo X”, a verdade não está lá fora. Está aqui dentro. O que é o terrorismo da Al Qaeda perto do nosso terrorismo?
Fonte: Rod Nordland e Scott Shane na reportagem "Libyan Makes Journey From Detainee to Rebel - and U.S. Ally of Sorts" in The New York Times, 25/4/2011.
Mestre Ferrari, concordo com tudo, mas achei o artigo do Safatle, desta vez, infeliz. A tese de Safatle é: a roupa das pessoas não é assunto de Estado e, portanto, a França está errada na proibição da burca. Ok, em princípio, concordo com isto. O problema é: o uso obrigatório da burca não está em nenhuma linha do alcorão - é uma invenção do estado islâmico. Isto é: se a França não pode proibir a burca, então o Islã também não pode inventar uma lei que torna seu uso obrigatório. Conclusão: o argumento é contraditório, porque se o Estado não pode interferir na roupa das pessoas, não teríamos a obrigatoriedade da burca. Além disso: uma mulher "ocidental" (já deixo entre aspas porque isto é complexo...) pode escolher não ser cristã e, caso escolha, não precisa ser freira, nem usar roupa de freira. No Islã, nada disso é possível. Finalmente: Safatle afirma que o argumento da opressão só pode existir em primeira pessoa - o problema é que há, sim, mulheres islâmicas que estão exigindo o fim da obrigatoriedade da burca, vide Persépolis. Creio que este assunto é complexo - para ser sincero, não tenho uma resposta pronta para a questão.
ResponderExcluirAbraços,
André Tezza
Querido André, que bom que tu brigas com o Safatle e concordas comigo. Eu também acho genial Persépolis - obra-prima contra o fascismo, esteja ele pintado de Islã, de judaísmo ou de protestantismo – não quero falar das freiras de novo . Porém, André, para que fizemos a revolução na França? Para proibir uma mulher de expressar suas fantasias? Vamos em seguida proibir Sade, o marquês? Aliás, nesses dias se cancelou na França a homenagem a Celine, pois segundo os censores de plantão, ele era antissemita. Isso é uma bobagem perigosíssima, pois uma coisa é a pessoa física de Celine, um crápula, um canalha da mesma forma que Wagner, por exemplo, alguém que você nunca convidaria para jantar em casa, mas outra coisa é a pessoa jurídica, sua obra maravilhosa, espetacular – basta ouvir Tristão e Isolda que tudo se dissolve. Continuando no tema, se no Islã ela não pode escolher, na França ela pode. E isso deve ser defendido, isso deve ser afirmado. Porque, caro amigo, o que começa na proibição da burca termina no trem do campo de concentração. Vide Guantánamo. Em nome da luta contra o terrorismo, o Estado decide não ser mais Estado, mas sim vassalo de um juiz invisível, de um grupete de militares fantasiados de defensores da liberdade. Onde estão as passeatas nas ruas protestando contra isso? Caro André, esse silêncio patético Freud chama de sintoma. Sem tratamento, ele se dissemina, ele toma conta, ele faz o que Maiakóvski cantou, na primeira noite, as rosas do jardim, na segunda, o tapete da sala e na terceira noite tua língua. Vamos debater mais. Um grande abraço.
ResponderExcluirFerrari, talvez a gente concorde com isto: somos contra a França e contra o Irã. Mas o problema é que o Safatle não fala contra o Irã. Não sei se é lícito dizer isto do Safatle, mas é como se a obrigatoriedade da burca fosse algo que não se discute, porque não temos o direito de pensar sobre outras culturas. Ora, mas então o Irã também deveria pensar assim da nossa cultura e o Irã não o faz - se uma mulher ocidental usar biquini no Irã, provavelmente será presa e, possivelmente, apedrejada, se não assassinada. O que Safatle diria sobre isto? Isto é: o ocidente é obrigado a tolerar outras culturas, mas as outras culturas não são obrigadas a tolerar o ocidente? Por mais que a história do ocidente seja uma carnificina sobre outras culturas (ainda que sempre seja bom lembrar que a história das outras culturas também seja uma carnificina...), isto não me parece justo. No final das contas, como disse Umberto Eco no sexto passeio do bosque da ficção, o limite da tolerância é a intolerância, isto é, não posso aceitar aquilo que ameaça a tolerância. Não posso aceitar o discurso fascista, porque o discurso fascista ameaça a expressão de todos os outros discursos. A grande pergunta da questão da burca é: ela é uma expressão fascista do fundamentalismo islâmico ou ela é uma expressão legítima da religião islâmica? Tendo a entender que é uma expressão do fundamentalismo, sobretudo depois de Persépolis, mas aceito que isto é complexo. Vamos pensar em outro exemplo: digamos que um movimento neo-nazista comece a utilizar uma farda com suástica. Se o Estado proíbe o uso da suástica, estaria sendo fascista?
ResponderExcluirQuerido André, tu trouxestes um ponto chave para o debate: o que o Estado pode ou não proibir, o que é intolerável? Aliás, sobre a suástica, Eichmann, em seu julgamento em Jerusalém, perguntou exatamente isso aos juízes: quem me autorizou a matar foi a lei do Estado alemão, eleito democraticamente para governar o país - logo, não sou culpado. Quem deveria estar aqui é meu chefe, não eu. Percebas, André, a lógica do funcionário-operário padrão aqui. Ou seja, ele se apresenta ao juiz como um autômato, ou seja, alguém que não pode questionar uma ordem, fazer corpo mole, como se diz no Brasil, ou se recusar a cumprir uma ordem perversa, uma ordem obscena. E isso vindo de um estudioso de Kant - que teria arrepios em escutar uma barbaridade dessas - mais uma prova de que a razão não imuniza contra a perversão. Bom, então, entendo que uma coisa é o Estado proibir alguma coisa, o bikini, a burca, a suástica, e aí está a questão para cada sujeito sobre o que significa essa lei e o que significa a obediência ou a desobediência. Me explico ou complico: com certeza a burca pode significar uma humilhante opressão para muitas mulheres afegãs, porém, e aí está a azeitona que a psicanálise traz para esta empada, pode significar também um pacto com Outra Lei, não mais a do Estado, mas a de uma família, a de uma religião - pacto que no judaísmo tem a forma do prepúcio, no catolicismo o batismo na água, enfim. Porém podemos encontrar outra mulher que faz da burca um uso erótico, um uso consentido de provocação com seu par, etc... Enfim, trago para o debate a lei do sujeito versus a lei do Estado, e uma advertência: querer que o Estado legisle sobre a fantasia íntima de cada um descamba no pior estalinismo, ou seja, como diz o Figes, viraremos sussurradores sem o benefício erótico do sussurro. Continuemos o debate. Um abraço.
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