terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O CAPITALISMO EM QUESTÃO

Fonte: Daniel Rittner in Valor, 24 de janeiro de 2011.

Daniel Rittner trouxe ontem no Valor um debate formidável: o Estado pode abrir mão do dever constitucional de proteger a saúde dos cidadãos para respeitar direitos legítimos de investidores estrangeiros? Coube a um médico, então na presidência da república, o sr. Tabaré Vásquez, responder não. Chega. Há limites para o capitalismo. Não há indústria-símbolo do capitalismo melhor que as fabricantes de cigarros. Só outra é comparável, a farmacêutica. O que produz uma indústria de cigarros? Ela produz, como todas as indústrias, fantasia. Que essa fantasia seja perigosa, seja nociva, seja viciante, enfim, é o que vai diferenciá-la de outras indústrias. Ora, para o capitalismo, e eis aí sua imensa força, as fantasias existem e muitas vezes, como nesse caso, contrariam o bom senso de qualquer cientista: como é que pode alguém querer se fazer mal? Coube a Freud responder essa questão: o ser humano é aquele que está bem no mal. Ele vai em busca de se ferir, de se sacanear, de se machucar – na maior parte das vezes querendo fazer exatamente o contrário disso, ou seja, querendo o bem, querendo o melhor. O problema, diz o doutor Tabaré Vásquez, é que esse tipo de indústria não se contenta em produzir o mal. Ela quer vender isso como se fosse o bem, quer anunciar isso na televisão como chicle, balinha, bombom, com camelinhos e borboletas esvoaçantes. Daí sua decisão: vai vender tendo no rótulo a palavra merda, a palavra veneno – e coube a este médico acabar com a farra das embalagens e dos anúncios mágicos dos cigarros no Uruguai. Sobre esse debate, o filme “O Informante” [The Insider, 1999] do diretor Michael Mann é bastante esclarecedor. Uma indústria que divulga falsas pesquisas como verdadeiras, uma indústria que compra cientistas e universidades, uma indústria que mente, que sabota, que sacaneia seus consumidores, essa indústria merece existir? É curioso que, se a resposta for não, acaba o capitalismo – vai ser difícil encontrar uma empresa fora dessa lista. Então, todo o problema do Estado é como permitir uma fábrica de drogas sem que esse empreendimento consiga atingir seu objetivo, que é viciar toda a população de um país. O Uruguai deu o exemplo: quer existir por aqui, então será desse jeito – e não de qualquer jeito como quer a indústria. Bravo Uruguai! Por outro lado, que o Estado me diga que isso faz mal, que a mensagem do fabricante é mentirosa, tudo bem. Agora, o Estado querer me impedir de comprar, querer me impedir de fazer uma escolha, aí caímos no totalitarismo. Eu não sei se a Philipp Morris tem razão em sua disputa. Mas é também uma das maiores qualidades do capitalismo o fato de uma empresa dessas poder duvidar das intenções do Estado. E isso é ótimo. Que o cigarro causa dependência e causa câncer, é sabido. Agora, que um Estado-Papai, que quer me tratar como criancinha de berço para o resto da vida também causa dependência e também causa câncer, é preciso saber disso também. Aqui, recomendo “1984” de George Orwell, também levado ao cinema em um filme atordoante do diretor Michael Radford, com a trilha sonora espetacular do Eurythmics.

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